Friday, September 11

Jorge de Sena volta a Portugal


Meu caro Amigo

Se me não engano, é esta a segunda carta que V. recebe depois de morto. A outra, como deve estar lembrado, escreveu-lha Carlos Queiroz, que o conheceu pessoalmente. Não tive eu tanta honra, o que, pode crer, é um dos meus desgostos verdadeiros. No entanto, não lamento o desencontro. Apenas a curiosidade ficaria satisfeita; e, em contrapartida, jamais o Álvaro de Campos ou o Alberto Caeiro se revestiriam, a meus olhos, daquelas pungentes personalidades que lhes permitiu, e aos outros, o seu espírito sem realidade nenhuma. Porque esta é a verdade, meu Amigo: toda a sua tendência para a “despersonalização”, para a criação de poetas e escritores “heterónimos” e não pseudónimos, significa uma desesperada defesa contra o vácuo que V. sentia em si próprio e à sua volta. Quando V. criou o Álvaro de Campos, o Alberto Caeiro e o Ricardo Reis, quando fez deles um grupo de amigos seus, defendeu-se contra si próprio – e só não o tendo eu conhecido pessoalmente, não tendo, pois, assistido à irremediável ausência de qualquer deles, era possível cumprir-se em mim (ou noutros em idênticas circunstâncias, e para quem, também, a poesia não seja uma forma definitiva como um título consolidado) o que deve ter sido um dos mais melancólicos sonhos da sua vida.

V. não foi um mistificador, nem foi contraditório. Foi complexo, da pior das complexidades – a sensação do vácuo dentro e fora, V. não foi um poeta do Nada, mas, pelo contrário, poeta do excessivamente virtual, de toda a consciência trágica de probabilidade, que a crença no Destino não exclui.
(...)
Não, meu Amigo! O D. Sebastião da “Mensagem” parece-se tão extraordinariamente com o Menino Jesus do “Guardador de Rebanhos” (“era o deus que faltava”...), que quase se suspeita da objectividade de “O Menino de sua Mãe”! É essa a fonte do espantoso vácuo que o cercava, meu Amigo: o vácuo da Terra, da qual o Sol se levanta, mas da qual não nasce!...
Não creio, portanto, que a morte o tenha prejudicado, meu Amigo: V. não diria mais do que disse; V. tinha dito sempre a mesma coisa – maravilhosamente, de quantas maneiras possíveis.

Veja, no entanto, as “Malhas que o Império tece”! Porque V., à parte o seu caso único na história das literaturas, para ser algo do Super-Camões que anunciara, não precisava de ter publicado uma espécie de Lusíadas, e de deixar as Líricas dispersas por revistas, ou amontoadas num baú, entregues às mãos do acaso e da amizade...

As suas obras estão sendo publicadas. O grande público decorará o seu nome; muitas pessoas o lerão; algumas o hão-de entender e amar. Outras desconfiarão de V. Outras, ainda, lamentarão secretamente aquela complexidade, de que já falámos, e que não pode servir de garantia a profecias ou realidades, para uso do “gado vestido dos currais dos Deuses”. Será tido como mistificador. Será tido como contraditório. Mas V., meu Amigo, já o sabia... E aquele sorriso vago, que flutuar aquém dos seus retratos, para quem será, não é verdade?

Creia na imensa admiração e no imenso respeito do
Jorge de Sena

Carta a Fernando Pessoa, In Fernando Pessoa & Cª Heterónima

1 comment:

Esquila said...

Há já algum tempo que não me cruzava com um elogio tão belo...