Monday, September 27


"Quando um homem começa a tocar-te com as palavras, chega longe com as mãos!"

Il Postino, 1994

Saturday, September 25


"(...) que significa o sangue a lei a convenção
para quem numa mão - amor ou amizade -
tem o sensível signo do sentido da vida"

Ruy Belo

Sunday, September 19

Sunday, September 12

Duas cidades, Paris

(…)

há uma altura, creio
um dia em que se acorda
e se percebe tudo:
a traição do acaso
que dispersa a folhagem do jardim,
a solidão inacessível dos desertos,
a ferocidade da natureza
em certas estações,
essa espécie de errância
que pertence ao silêncio
mais que a qualquer palavra


Baldios, José Tolentino Mendonça na Assírio e Alvim

Wednesday, September 8

Uma ideia da Índia, de Alberto Moravia


Uma ideia da Índia é um livro acre, de sabor picante e odor a caril e a sândalo, que nos chega quente e envolvente como o clima indiano. Como objecto em si mesmo, tem um valor irrefutável: é fruto de uma das belíssimas edições da Tinta da China, editora que faz questão de adoptar uma política diferente da de muitas outras, assumindo frontalmente que um livro também deve ser esteticamente agradável por fora. Este livro, como os outros da colecção, conta por isso com mapas na contracapa, escolha de cores e de caracteres irrepreensível e até um marcador — preto e sedoso — incorporado.

Moravia, por sua vez, é o descritor objectivo e indiferente, que fala das cidades e dos seus habitantes como se estes não tivessem tido contacto directo com ele, mas antes os visse através de um ecrã de vidro transparente, que o isola e o torna incorruptível. Não chego a perceber se gostou ou se, pelo contrário, não gostou, da Índia. Percebe-se que não está arrependido da viagem, mas não é possível saber se tal se deve a uma procura inata de saber e é uma mais-valia para a sua actividade profissional e enquanto homem ocidental, ou se se deve antes a uma verdadeira descoberta de um mundo exótico que o conquista. Esta forma de não revelar liminarmente as suas inclinações é ajudada pelo tom sóbrio que usa para descrever tudo o que o rodeia, ausente de considerações mais mundanas ou infundadas, e pela ausência, por vezes demasiado notória, de referências aos seus companheiros de viagens - Elsa Morante e Pier Paolo Pasolini - ou a peripécias mais triviais que em princípio lhes devem, de facto, ter acontecido. Como se, propositadamente, Moravia omitisse todos os pormenores que pudessem fazer o leitor suspeitar de qualquer parcialidade ou influência — ele esteve na Índia, mas não esteve, ele viu-a com os olhos da Europa (é impossível, mesmo que tente evitá-lo, não o fazer) mas não a viu com os olhos de europeu. Se a Índia é tal como ele a escreveu, não é possível dizer, até porque o fez em 1961 e quarenta e um anos depois é de esperar que as paisagens que atravessou já não sejam as mesmas. Mas a sua escrita é, sem sombra de dúvida, bela o suficiente para valer por si só, é densa e clara como poucas, e sozinha justifica, sem mais, que se leia este livro.

As opiniões que o autor julga mais ponderadas e objectivas, essas ele deixa transparecer ao longo de toda a narrativa: a maneira como os indianos encaram a religião (retratando “a natureza imediata e nua” na forma dos seus deuses que, ao envolver-se sexualmente, querem “encobrir o divino, cósmico e inefável desejo que (...) está na origem de todas as coisas"), a arte indiana (“o ódio ao vazio, a proliferação delirante dos ornamentos”), a figura do próprio primeiro ministro Nehru, a quem chama “o intelectual”. Na vertente mais sócio-política e económica da sua análise imperam as razões que Moravia aponta para a pobreza em que a Índia vive mergulhada — a rigidez ainda viva do sistema das castas, por exemplo — e a influência que os diversos povos colonizadores nela exerceram, especialmente os ingleses, que segundo Moravia estão intimamente ligados à história indiana, não tanto por um processo de colonização, mas principalmente por um de simbiose parcial. No final, ainda assim, o que nos irá impressionar mais neste livro será mesmo a beleza das palavras, cuidadosamente escolhidas, e uma curiosidade insaciável por um povo que nos é tão próximo e que, ao mesmo tempo, não podia estar mais distante de nós.

Camilo Pessanha (1867-1926)

além do suco
da papoila

a quem pedir contas
pelo atear da escrita?

Miguel-Manso, Santo Subito, p.27

Monday, September 6

Sunday, September 5

Raiz de Orvalho

Sou agora menos eu
e os sonhos
que sonhara ter
em outros leitos despertaram

Quem me dera acontecer
essa morte
de que não se morre
e para um outro fruto
me tentar seiva ascendendo
porque perdi a audácia
do meu próprio destino
soltei ânsia
do meu próprio delírio
e agora sinto
tudo o que os outros sentem
sofro do que eles não sofrem
anoiteço na sua lonjura
e vivendo na vida
que deles desertou
ofereço o mar
que em mim se abre
à viagem mil vezes adiada

De quando em quando
me perco
na procura a raiz do orvalho
e se de mim me desencontro
foi porque de todos os homens
se tornaram todas as coisas
como se todas elas fossem
o eco as mãos
a casa dos gestos
como se todas as coisas
me olhassem
com os olhos de todos os homens

Assim me debruço
na janela do poema
escolho a minha própria neblina
e permito-me ouvir
o leve respirar dos objectos
sepultados em silêncio
e eu invento o que escrevo
escrevendo para me inventar
e tudo me adormece
porque tudo desperta
a secreta voz da infância

Amam-me demasiado
as cosias de que me lembro
e eu entrego-me
como se me furtasse
à sonolenta carícia
desse corpo que faço nascer
dos versos
a que livremente me condeno

Mia Couto, Raiz de orvalho e outros poemas