Friday, November 27

A pound of flesh, nothing more

Soneto

Esperança e desespero de alimento
Me servem neste dia em que te espero
E já não sei se quero ou se não quero
Tão longe de razões é o tormento.

Mas como usar amor de entendimento?
Daquilo que te peço desespero
Ainda que m`o dês - pois o que eu quero
Ninguém o dá senão por um momento.

Mas como és belo, amor, de não durares,
De ser tão breve e fundo o teu engano,
E de eu te possuir sem tu te dares.

Amor perfeito dado a um ser humano:
Também morre o florir de mil pomares
E se quebram as ondas do oceano.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Tuesday, November 24

Ameaça

Um dia vais arrepender-te!

Vou fazer-me explodir em palavras diante de ti
e vamos morrer os dois cravados de sentidos.

Pedro Canais

No man is an island

Monday, November 23

Justiça e poesia

"(...) o poeta é levado a buscar a justiça pela pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. (...) Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Confunde-se com aquele amor que, segundo Dante, move o Sol e outros astros. Confunde-se com a nossa confiança na evolução do homem, confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixão, também em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência."

in Obra Poética Sophia de Mello Breyner Andresen, da Caminho

Tuesday, November 17

Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o [olhar extático da aurora.

Vinicius de Moraes

Saturday, November 14

Pieces

Ela amava doidamente, amava de olhos fechados, pele sempre sedenta de afagos e mãos estendidas. Pouco a pouco ele distanciou-se, foi procurando um espaço próprio onde ela não pudesse também entrar, e fechou-se. Ela entrou em desespero rapidamente, e não conseguindo suportar esta indiferença, que nem autorização para sofrer lhe dava (não era uma verdadeira ruptura, não era nada, simplesmente), cortou-se aos bocadinhos, até o pedaço mais pequeno caber num envelope para passar por baixo da porta.

(O amor é o sentimento mais egoísta e altruísta de todos; egoísta ao ponto de matar pela exclusividade, altruísta até nos matarmos pelo infeliz sujeito do nosso amor. O amor dos amantes é diferente do fraternal e solidário, é ferrenho e incontrolável, fere e é ferido por uma simples bolha de sabão. Não há nada que se deteste mais do que o ser amado “a monte”, como escreve MEC.
Se o acaso se encarrega de que gostemos assim tanto de alguém, essa pessoa torna-se mais importante para nós do que qualquer outra coisa no mundo; mas exigimos dela igual disposição e, a partir daqui, num processo imparável, exigimos cada vez mais atenção.

Se o ser amado se quer divertir, tem de ser connosco; se quer descansar, no nosso regaço; se quer jogar, tem de ser contra nós.)

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Este mundo este mundo * este é o mesmo mundo
Dos sóis e da poeira * dos tumultos e das completas
Tecelão das galáxicas * prateador dos musgos
Ao esvair da lembrança * à entrada dos sonhos
Este é o mesmo mundo * este mundo este mundo é
Címbalo címbalo * e riso vão ao longe!

Odysséas Elytis, Louvada Seja

Wednesday, November 11

A vida

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.

Nuno Júdice, in Teoria Geral do Sentimento

Tuesday, November 10

Da justiça e outros

"Porque os advogados (...) estão muito longe de quererem introduzir ou impor os mínimos melhoramentos na justiça; em compensação - e é muitíssimo revelador - quase todos os acusados, incluindo as pessoas mais simples, começam desde o princípio do processo a encarar melhoramentos a propor e desperdiçam muitas vezes assim um tempo e forças que poderiam utilizar com muito melhor proveito."

Der Prozess, Franz Kafka

Thursday, November 5

O outro lado

Não consigo dormir. Há poucas horas
despedi-me de ti - «every time
we say goodbye I die a little.
Devo habituar-me
às fases dessa lua a que obedeces,
às estranhas marés de cada instante
que tu sabes viver como se fosse
o único, o melhor da tua vida
isente de remorsos e de apegos,
tão próxima de tudo. A minha dor
vai-se apagando à medida que um anjo
desce ao meu quarto e começa a torná-lo
fugaz imitação de um paraíso
em que até o meu nome se alterasse.

Não há nada a fazer, no entanto:
o facto é que, apesar de algum amor,
eu não me chamo Pedro,
mas sou ainda demasiado humano
para me libertar. Ainda não despertei,
ainda não tenho trinta e cinco anos
como Siddharta no momento em que
terá visto o vazio, escutado o inaudível.

Aquilo que vislumbro a esta hora
são rápidos reflexos de uma silhueta
que só podes ser tu
entre o céu e o mar, nessa noite
de lua cheia, quando abandonámos
um restaurante junto ao Guincho. Eu queria
ficar também assim, unir-me devagar
à linha do horizonte, sem saber
distinguir as fronteiras de coisa nenhuma.

Não hei-de conseguir: por mais que tente,
por mais que me desprenda ou desaprenda
os ritos e os ritmos do corpo ou da alma,
hei-de lembrar-me dos teus olhos vagos
e hei-de supor que estavam procurando
dizer-me qualquer coisa. Apenas o silêncio
poderia falar como eles
nessa plena doçura de existir
na maior paz do mundo. E contudo, pra mim
cada palavra se conjuga sempre
com outras palavras, e assim por diante
até ao infinito, até formarem
por exemplo um poema como este
- inútil quer pra mim, quer pra ti
ou pra qualquer leitor que nele ainda
pretendesse encontrar alguns vestígios
dessa tão pobre e má sabedoria
à qual, já só por hábito literário,
gostamos de chamar o coração.

Despedi-me de ti há pouco tempo,
mas continuo a ver-te, ignorando
por que me agrada ainda a sensação
de ter morrido mais um pouco. A vida
vai arrastar-me ao longo de outras vidas
entre o maelström dos bares onde irei afogar
esta ansiedade exausta – não é grave,
eu sei que não é grave e que entre nós
há-de restar plo menos a sombra de um anjo
que nos segrede uma palavra mágica
e saiba prolongá-la em tudo o que algum dia
- talvez daqui por meses, anos, séculos –
ainda formos capazes de sentir.

Fernando Pinto do Amaral, em A Escada de Jacob
Enviado pelo Ao longe os barco de flores

Tuesday, November 3

eisfluências

A COERENTE INCOERÊNCIA DOS POETAS
Por Carmo Vasconcelos

O poeta tem dias de apego e outros de libertação. A fascinante essência do poeta é mesmo essa dicotomia. A pluralidade de desejos, a inconstância de ser e estar, a inquietude perene, a ânsia latente, na incansável busca da união com o TODO, porque menos do que isso é a insatisfação do poeta. O poeta ora abre as asas ao sol, ora se ensopa de chuva; ora sorve o ar que respira, ora sufoca em recolhimento. Por vezes, é fuga. Veste-se de distância e monta na garupa do vento! Tanto se deseja solto como uma gaivota, como se deseja aprisionado, refém rendido ao amor!

Temos um novo espaço jornalístico na blogosfera: http://eisfluencias.wordpress.com/

hypercube

Ainda poesia

A lua e marilyn

Tinha duas faces como a lua
Uma que toda a gente conhece
e outra (a que nunca se vê, a que não reflecte o sol)
e que ninguém (ou quase ninguém) está interessado em conhecer
É esse o teu lado que me fascina
que sempre me fascinou
Pousavas sobre as coisas (uma bicicleta, os lábios de Yves Montand)
como uma borboleta
e não pesavas mais do que isso
e o écran ficava amarelo quando te punhas a sacudir
o pólen que trazias agarrado nas mãos
Eu que sempre gostei de ir ao fundo de tudo
(e acabo por me ficar pela superfície de tudo)
custa-me a entender como é que tu ao passares a língua
pela casca de um fruto carnudo
lhe ficavas logo a conhecer o sabor ácido da polpa
(...)

Jorge Sousa Braga, O Poeta Nu

Sunday, November 1

O livro dos amantes - VI

Aumentámos a vida com palavras
água a correr num fundo tão vazio.
As vidas são histórias aumentadas.
Há que ser rio.

Passámos tanta vez naquela estrada
talvez a curva onde se ilude o mundo.
O amor é ser-se dono e não ter nada.
Mas pede tudo.

Natália Correia