Friday, April 24

Poesia precisa

“Isto explica também por que razão é tão reduzido o número de pessoas que habitualmente lêem poesia: para interpretar é necessário, reiterando o símile musical, ter familiaridade com o instrumento que, no caso da poesia, é a própria pessoa leitora, o seu passado, as suas esperanças, os seus desgostos, as suas frustrações. Ninguém como ele ou ela pode conhecer este instrumento, mas usá-lo para interpretar exige um esforço muito maior que o que costuma empregar o mero espectador. Trata-se de uma relação que não é costume dar-se com esta intensidade na literatura. Porque a poesia não é um género literário, mas algo com características próprias e diferenciadas, como a música ou como a ciência. 
O poema surge do interior do poeta, da sua própria vida, e ainda assim deve falar daqueles subtilíssimos sentimentos que não lhe pertencem a ele apenas, pois nesse caso seria um mau poema, na exacta medida em que não poderia interessar a ninguém mais do que a si mesmo. Os poemas devem construir-se a partir de algo que, constituindo parte da vida do poeta, pertença igualmente à dos demais. Este foi o meu propósito: que aquele ou aquela que leia o que escrevo possa de algum modo reconhecer-se nisso que lê. Que sinta a força que nos faz reconhecer que este – ou esta – sou eu, esse reconhecimento que travamos quando lemos um bom poema. 
Não é sem mistério que isto se faz sempre acompanhar de uma exactidão e de uma precisão que radicalmente separam poesia e prosa. Desta exactidão procede o poder de consolação da poesia, pois esta serve para introduzir na nossa solidão alguma mudança que proporcione uma ordem interior mais ampla contra a desordem causada pela vida. A angústia provocada por esta desordem, às vezes tentamos enfrentá-la com meros paliativos, com entretenimentos. Porém, de um entretenimento saímos os mesmos que entrámos, passageiros de um tempo que, na melhor das hipóteses, terá sido indolor. Por outro lado, ao concluir a leitura de um bom poema, já não somos os mesmos. A nossa ordem interior fez-se mais ampla.”

 Joan Margarit, prólogo ao seu livro “Misteriosamente Feliz”, editado pela Língua Morta.

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