Monday, June 26

Tolerância e democracia

"A tolerância nasceu, pois, como um valor do laicismo: foi um preservativo contra o zelo apostólico. Conserva este sentido clássico nos países teocráticos, como o são alguns de cunho islâmico. É uma demonstração patética de indigência intelectual entreter-se a discutir o se o "verdadeiro" Islão manda ou não cometer as atrocidades inquisitoriais que se levam a cabo em seu nome. Como o cristianimos ou o judaísmo, como as restantes religiões, o Islão mistura barbaridades crúeis, superstições absurdas e uma comovedora piedade humana, a partir de confusos e arcaicos textos e da voz sobreposta de mil clérigos: o intolerante não é o Islão, mas sim o seu poder político, o facto lamentável de continuar a ser a única ou principal fonte de legalidade em comunidades cujo pluralismo asfixia. Mas é claro que o nosso século também conheceu exemplos desta pretensão eclesiástica de se converter no referente unânime de sentido da vida social dentro de movimentos políticos não religiosos: os totalitarismos comunista e nazi, os nacionalismos ferozes, o racismo e a xenofobia, até o produtivismo à outrance e a santificação exclusiva do lucro econónimo (cuja contrapartida não é o desinteresse franciscano, mas sim interesses igualmente materiais e racionais, embora de ordem diferente).

Nos países democráticos e nos que desejam vir a sê-lo, a tolerância já não é só uma reivindicação feita por indivíduos e grupos aos poderes políticos, mas uma exigência da comunidade a cada um dos seus membros, para que suportem pacificamente aquilo que desaprovam nos seus concidadãos. Deve ficar claro que viver numa democracia actual (e ainda mais na futura) equivale a coexistir com aquilo de que não gostamos, com o que consideramos errado ou mesquinho, com o que nos repugna ou não conseguimos entender. Democracia é um concerto discordante, uma harmonia cacofónica, pelo que exige mais lassitude no aspecto colectivo e mais maturidade responsável no campo pessoal do que outro sistema político. O que caracteriza o viver em democracia é sentir impaciência e desassosego; encontrar no comum um amparo genérico, mas pouco consolo gregário para as inquietações privadas. De modo que a tentação de se identificar com algo simples e vigoroso, que expulse incertezas e dissidências, é constante, sobretudo quando a educação não anda muito bem e a economia tão-pouco."

Fernando Savater, Livre-mente

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