Thursday, March 20

Boucinha

Hoje, primeiro dia da primavera, fazias anos. O que será que pensas de mim, das minhas escolhas, do caminho que trilhei? Nunca mais consegui entrar na tua casa, fico presa na soleira, como vampiro não convidado. Aquele lugar já não é o teu. Mas qual é, então? Não são os dois metros quadrados de terra com um número em Benfica, certamente. Mais do que aí, moras naquele placar plástico no Saldanha a proteger umas obras, que diz Soares da Costa. Moras em mim, no meu desejo de ser Boucinha, nos arrependimentos que tenho. Não tenho muitos, e às vezes até do teu me esqueço, e por momentos penso que bom, vinte e quatro anos já, atribulações, e nenhum arrependimento. Ah, mas há um, subterrâneo, inquieto, do último dia em que não estive lá para me despedir de ti porque substimei a força da vida e da morte. Quando fico muito triste por causa disso consolo-me com o sonho que tive contigo na noite seguinte, nesse momento que tivemos para nos despedir. Tento também lembrar-me que o homem que foste tinha muitos problemas, muitos defeitos, fizeste infeliz pessoas de que eu gosto. Ah, mas não consigo concentrar-me nisso, porque também foste tu que acolheste a M. sem a julgar quando precisou, foste tu que choraste naquele dia, por nos amares. Foste tu que me gravaste aqueles VHS cheios de bonecos para me agradar, fizeste recortes para discutirmos juntos e me tentaste explicar o que realmente pensavas sobre religião. Tenho pena de todas as vezes que não quis estar contigo, principalmente mais perto do final, porque muito faltou contares-me. Eu sei que sentias o mesmo por mim que eu senti por ti, quando li o teu livro e vi os primeiros rascunhos encontrei no meio fotos e poemas meus que te dei. Até partires, nunca tinha partido ninguém que eu amasse, por isso contigo aprendi a morte, também. Acho que se me visses agora, se me estiveres a ver, vais continuar do meu lado, aprovador.
 
Sinto a tua falta. Feliz aniversário...

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