Sunday, April 5

À esquerda daquela árvore - Victor Jerónimo

Não sei se alguma vez isto se passou com vocês
no Jardim Botânico, que é um parque muito calmo
onde se pode sentir sempre próximo uma árvore,
mas tem sempre que cumprir-se uma cláusula...
...que a cidade fique tranquilamente, longe.
 
O segredo é apoiar-se digamos, num tronco
e ouvir através do ar, que admite ruídos mortos
como se Reis e cavaleiros galopassem entre as trevas.
 
Não sei se alguma vez isto se passou com vocês
mas no  Jardim Botânico, sempre existiu
uma agradável propensão para os sonhos,
porque os insectos sobem pelas pernas,
porque a melancolia desce pelos braços,
até que uma palmada nossa os afaste.
 
Depois disto tudo o segredo é olhar para cima
e ver como as nuvens lutam entre as copas
e ver como os ninhos lutam pelos pássaros.
 
Não sei se alguma vez isto se passou com vocês
mas há casais que buscam o Botânico
eles descem de um táxi, ou saem das nuvens
falam normalmente de temas importantes
e olham-se fanaticamente nos olhos
como se o amor fosse um pequeno túnel
para se contemplarem dentro desse amor.
 
Olhem, por exemplo, para a esquerda daquela arvore
falam e, as suas palavras, param
comovidas a olharem-se e, a mim...
nem sequer seus ecos chegam.
 
Não sei se alguma vez isto se passou com vocês
porém, é lindo imaginar o que dizem
sobretudo se ele morde um ramo,
ou se ela deixa um sapato entre as pedras,
sobretudo se ele tem uns olhos tristes
ou se ela quer sorrir, porém não pode.
 


Para mim o rapaz está a dizer
o que se diz muitas vezes no Jardim Botânico

Olha, chegou o Outono
O sol de Outono
E sinto-me feliz
Que linda que tu estás
Sinto-me feliz
Quero-te
No meu sonho
Da noite
Onde escuto as conchas,
O vento no  mar
E sabes?
Aqui também há  silencio
Olha para mim
Quero-te,
Eu trabalho muito
Faço números
Fichas,
Discuto com cretinos,
Distraio-me e zango-me
Dá-me a tua mão
Agora
Sabes?
Quero-te muito
Penso ás vezes em Deus
Não tantas vezes,
como gostaria
não gosto de roubar
o seu tempo
mais a mais está longe
agora tu,
estás ao meu lado
e, agora mesmo estou triste
estou triste e quero-te
já passaram muitas horas
na rua está um rio
as arvores ajudam
os céus
e que sorte a minha
quero-te
há muito era menino
há muito o que importa
o azar era muito
como entrar em teus olhos
deixa-me entrar
quero-te
deixa-me entrar
quero-te
menos mal, mas quero-te
(...)

Escrito em Outubro de 1988 no Jardim Botânico de Lisboa
Publicado em Terra Latina, antologia poética internacional

2 comments:

Unknown said...

Muito agradavel esta surpresa
Fica aqui o meu bem-haja e gratidão
Gostei do seu blog
Saudações literárias

R.Joanna said...

Fico muito contente por ter gostado :)
Espero que não se tenha importado com a publicação deste seu poema, mas ele é tão bonito e tocou-me tão particularmente que não resisti.

Um abraço